terça-feira, 9 de outubro de 2007

# 3 Do Isopor


(©silvia.magalhaes)

Tinha acabado de chegar. Apenas dois dias de uma nova história. Um mundo por desvendar. Muitos retratos novos me seduziam. Comigo, uma tela em branco. Qualquer ângulo dava uma pintura, uma fotografia, uma oportunidade para conhecer, enriquecer, saborear, desfrutar…. Para trás, uma porta fechada. Não havia ligação possível entre aqueles compartimentos da minha vida. Fechei uma. Abri outra. Logo se veria o que viria por ali. E essa noite prometia. Seria a primeira noite fora de casa naquela cidade estranha. Estava sozinha, eu e o meu novo mundo. Saio à rua, apanho um táxi. Pergunto pela praça. Todos os caminhos conduziam àquela praça nessa noite. No ar, a ameaça de folia para alguns metros depois, adiantando o que viria alguns dias depois. Era o Carnaval que estava a chegar. Nas ruas, já se sentia a passada da marchinha. E nessa terra da alegria, tinha de haver uma grande preparação. Dias antes. Semanas antes.. Meses? Sim, meses antes! Na verdade, há lugares onde não são precisos motivos para se festejar. Festeja-se a vida, que já chega como motivo. Cheguei à praça e logo uma multidão chegou junto. Para se juntar à multidão que já lá estava. E dançava. Dançava sem qualquer vergonha ou complexo, como só ali pude ver. Ao fundo o samba tocava e marcava o compasso do povo. De todas as idades. Não há distinções de idade naquele lugar. Nunca se é velho demais para alguma coisa. Sobretudo para se festejar a vida. São todos meninos em corpos de adultos, com mais ou menos rugas na pele. Todos conhecem bem a criança dentro deles. E gostam de a cultivar.
Algum receio dos imprevistos. Afinal nada daquilo eu reconhecia. E não reconheci um monte de coisas a seguir… entre elas uma palavra - isopor.

“-Como?
-Isopor
-Iso..
-ISOPOR! Esse negócio branco aqui..
-Ahh…Esferovite!
-Hein??”

O Isopor era o esferovite. O esferovite das caixas que carregavam o combustível para toda aquela folia. A boa e velha “geladinha”. Toda a gente se servia dos vendedores e logo percebi que precisava ir lá buscar uma também... (para me ambientar completamente àquele novo mundo!)

Um menino vem ter comigo e estende balas (rebuçados). Era o único de olhar triste. Cabelo carapinha e olhar triste. Por isso me chamou a atenção. Porque me estendeu a mão com o olhar triste num lugar onde só se respirava alegria. E tantas tristezas disfarçadas em corações apertados. Mas essa alegria sempre foi mais forte. Venho a encontrá-lo várias vezes mais tarde, noutros dias, sem banda a tocar. Sempre com as mesmas balas, ou outras balas. Sempre com o mesmo olhar triste.

E as caixas de isopor ambulantes continuavam a penetrar a multidão por todos os lados.

“agora vou divertir
agora vou prosseguir
quero ver quem vai ficar
quero ver quem vai sair”

E marchavam ao som do samba que tocava ao fundo. Lá dentro a bebida sagrada desse nordeste perdido. 2 Reais a lata. E todos os problemas esquecidos. E as latinhas corriam de mão em mão. Beber para chorar, beber para rir. Beber para comemorar o que ainda estava por vir. Bebemorar era a lei desse Ceará. Viver e seguir em frente bebendo. Nada mais era preciso.

Apenas um sorriso naquele menino vendedor de balas.

O isopor ficou por essas festas tropicais. Veio de novo o esferovite. Mas fiquei a saber que não são precisos motivos para comemorar. A vida por si só é o bastante. Fiquei a saber que há crianças que não sorriem nunca. Por mais que sejam crianças. Por mais que todos à volta sorriam. Fiquei também a saber que esferovite também pode ser chamado de isopor. E sem perder a substância.

(em resposta ao Esferovite da Maurette)

1 comentário:

Maurette disse...

Minha querida cronista,
E pensar que, ontem, reclamavas que não conseguias escrever sobre o nosso primeiro tema!!!
Não poderia ler nada mais bonito sobre o encontro de alguém com a minha/nossa terra. Nas tuas palavras passei em revista tantas verdades, enxerguei tão bem o modo de ser do nosso povo, atravessei a fronteira para o mundo dos meninos e meninas de olhar triste que encontramos perdidos pelas nossas cidades, mazelas aparentemente sem cura que não há, ou quase não há, na terra do esferovite.
Foste fundo, num texto lindo, de coração aberto, de alguém que observa mesmo com a alma. Uma emoção muito grande para mim, receber este presente de uma amiga que já é grande no meu coração. Amei não só o texto como o teu jeito de sentir o Brasil. Que Deus te abençoe muito, sempre!
(E qual é o nosso próximo tema????)
Beijo
Maurette